domingo, 21 de setembro de 2008

Semana do Coração IV

Coração: o símbolo do amor
Reverenciado desde a Antiguidade, o órgão adquiriu uma forma para poetas e outra para os cardiologistas

Por Gabriela Scheinberg

Por volta do século 5 a.C., começa na Grécia Antiga um debate palpitante sobre a localização da alma. Explica-se: os gregos não concebem algo espiritual sem assinalar um lugar no corpo. Hipócrates, o mais famoso médico da Antiguidade, diz que a inteligência se encontra na cabeça. Platão discorda. Para ele, a alma imortal está na cabeça, mas a alma mortal, responsável pela inteligência e os sentimentos, está no coração. Os desejos sensuais, por sua vez, procedem do fígado. Aristóteles contradiz essa separação. Só existe uma alma, afirma, e ela se encontra no coração, o centro do ser humano, o fogo interno que dá calor e vida. Fica assim estabelecido pelos séculos seguintes a primazia do coração. Alguma dúvida?
Nenhuma, dizem os enamorados que rabiscam coraçõezinhos apaixonados tendo ao centro o nome da amada. Com eles concordam os cristãos, para quem o coração é o símbolo da bondade e da caridade, e os poetas e escritores românticos, encarregados de dissecar em suas obras os estados emocionais do coração.

Hoje se diz que um coração pode ser mole ou de pedra. Estar leve ou pesado. Pode bater descompassado ou até quebrar. Dói na despedida e pula quando algo bom acontece. Está representado em objetos, jóias, propagandas, biscoitos, utensílios, slogans e roupas íntimas. Serviu de ícone do movimento hippie nos anos 60. É o símbolo do Dia dos Namorados, comemorado em 12 de junho. Só não dá para entender como a imagem cultuada virou sinônimo daquele órgão de 12 centímetros de altura por 8 de largura, 300 gramas de peso, com formato de um punho, situado no meio do peito e tão querido pelos cardiologistas.
"O formato anatômico ficou desprendido do sentido", afirma Ivan Santo Barbosa, professor de semiótica da Escola de Comunicações e Artes da USP. Desde o começo, o coração estimula a imaginação, influi nos sistemas filosóficos e motiva metáforas e representações. Os sacerdotes astecas, por exemplo, costumavam arrancá-lo do peito dos inimigos vivos para oferecê-lo aos deuses, conforme está ilustrado em um templo de Chichén Itzá, no México.



A primeira imagem pode ter sido esta, desenhada há cerca de 12 mil anos numa caverna

Os egípcios representavam o órgão como um escaravelho esculpido colocado nos sarcófagos. O órgão original, depois da morte, era pesado em uma balança. Se o morto fosse um homem de bem, o coração estaria leve e ele seria levado para junto dos deuses. Caso contrário, seu lugar era no mundo das trevas, como é mostrado em um papiro do Livro dos Mortos que apresenta, provavelmente, a primeira representação gráfica do coração. Tanto valor é explicado. Segundo o anatomista Liberato Di Dio, responsável pela mais recente reformulação dos nomes dos órgãos do corpo humano, o coração assumiu um papel primordial entre as culturas por ser o único órgão que se pode ouvir e sentir pulsar.

"Quando alguém passa por fortes emoções, o coração dispara e isso é possível de perceber", afirma Di Dio. Os batimentos cardíacos são um sinal de vida. Serviram mesmo para caracterizar o órgão. A palavra coração deriva do latim "cor" e do grego "cardia". Acredita-se que originalmente venha do termo sânscrito "hrid", que significa saltador. Entre os ianomâmis, ele se chama "tikytikymu", uma referência sonora ao ritmo.

Ajustando a formaA representação do coração foi mudando à medida que se sabia mais sobre ele.


Para Nova York, o coração é pop



Em 1975, o Departamento de Comércio de Nova York procurava revitalizar a cidade com um símbolo forte. Naquela época, o designer Milton Glaser criou o logotipo abaixo. Foi a primeira vez que o coração foi usado como representação da palavra amor numa frase, o que foi copiado no
mundo todo.

Aula de anatomia
Pode-se dizer que o símbolo e o órgão disputaram carreiras separadas na história. Enquanto a imagem ganhava significados cada vez mais ricos, a sua representação anatômica pouco evoluiu desde que o primeiro homem desenhou um coração (ou pode ser uma orelha, não se sabe ao certo) em um animal na caverna de Pindal, há 12 mil anos, na Espanha. Até que o médico inglês William Harvey (1578-1657) descrevesse a circulação sanguínea e a anatomia e fisiologia do coração, o órgão foi muito mal representado.
Os gregos antigos, de onde se originou todo o conhecimento médico na Europa até mais ou menos o século 16, não conheciam o seu papel na circulação e representavam suas cavidades de forma distorcida. Galeno, depois de Hipócrates, o mais ilustre representante da medicina grega, descrevia o formato cônico do coração, que evoluiu até assumir a forma de um pinho de cabeça para baixo, com uma reentrância no topo representando uma de suas "três" cavidades.

O medo do transplante
Símbolo, metáfora e anatomia se confundem no mundo moderno. Sobretudo quando se trata de transplante de coração. "Quase todos os pacientes perguntam se vão perder a personalidade", diz Bellkiss Romano, diretora do serviço de psicologia do Incor, em São Paulo. Nessas ocasiões, é comum a pessoa mudar seu comportamento após a cirurgia, geralmente para melhorar a qualidade de vida, uma vez que a morte passou perto. "A família estranha a atitude e acha que o novo coração é responsável", afirma a especialista. "O paciente precisa mudar para sobreviver. O estímulo não vem do coração novo, mas do próprio paciente, que quer viver mais."

Símbolo religioso
Enquanto isso, o símbolo se ampliava. O coração representava o amor, a amizade, a inteligência e o valor. Na bíblia judaica, a Torá, a palavra coração aparece 190 vezes. O Alcorão, escrituras sagradas dos islâmicos, cita a "inteligência do coração" como sendo a combinação do amor e da inteligência. Com os cristãos, o símbolo ganha novas dimensões cujo apogeu coincide com o culto do Sagrado Coração de Jesus. Entre as muitas histórias que correram na época, destaca-se a de Santa Teresa de Ávila, no século 16. Quando jovem, ela teve a visão de um anjo que atravessava seu coração com uma flecha de ouro ardendo. Santa Teresa morreu muito mais tarde em um convento, mas seu coração foi conservado em uma urna de cristal e de pedras preciosas.
Por volta do século 3, Santo Agostinho dividiu o amor em dois tipos: o amor a Deus e o amor material. Santo Agostinho pregou o primeiro e usou o coração como símbolo desse sentimento, por estar associado à sede da alma, o que evoca o que há de mais sagrado na religião. "Santo Agostinho difundiu a idéia de que o símbolo do amor exclui o sexo e prioriza a alma", explica Edgard Leite, professor de história das religiões da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Mas o amor profano, dos enamorados, também evocou o coração nos romances de cavalaria, nas trovas medievais e, muito mais tarde, na literatura romântica. "O coração tem razões que a própria razão desconhece", insistia o francês Blaise Pascal (1623-1662), matemático convertido ao jansenismo.

No século 19 e início do século 20, o coração dá sinais de cansaço. Grandes escritores como Balzac, Flaubert, Zola, evitam evocá-lo como sinal de amor. A mesma repulsa sentem Proust e Gide em romances posteriores, por estar associado a imagens vulgares e sentimentais. Os hippies virão resgatá-lo na década de 60, e logo o coração vai tornar-se um símbolo comercial. É hoje um dos ícones mais usados no mundo. "Simples, fácil de configurar e de ser reproduzido", resume o professor de semiótica Ivan Barbosa.



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